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Os primeiros textos...


Sempre que se fala em criança e desenvolvimento da leitura, pensa-se em livros. Eu mesma aqui no blog não paro de pesquisar livros para o bebê que estimulem a sua formação enquanto leitor.

Durante as férias, porém, lendo a autobiografia da Rita Lee, me dei conta de que os primeiros textos que a criança tem contato não estão nos livros. Pelo contrário. Eles estão nos álbuns de fotografias, nos caderninhos de receitas, nas listas de supermercado, nos bilhetes para a escola, nas etiquetas e em todos os demais suportes que abrigam a produção escrita de uma família.

Se pensarmos bem, e você irá concordar comigo, Os primeiros textos que uma criança se depara em sua vidinha são aqueles escritos por autores não profissionais, seus familiares. São eles (ou melhor, somos nós) que abrimos as portas da leitura para os recém-nascidos. Não produzimos textos editados, revisados ou impressos. Não escrevemos textos que podem ser comprados. Os textos produzidos no contexto familiar são textos que simplesmente encontramos espalhados por aí na casa da gente, na casa dos avós, dos tios, entre os livros das prateleiras, no fundo dos armários.

Tudo isso me veio à mente por que em determinada passagem do livro da Rita aparece uma fotografia dela ainda bebê (uma fofa), vestida com aquela roupa especial de batizado, ao lado das irmãs. Na foto, uma legenda escrita à mão: “Rita querida no dia de seu batizado”. Emocionada, Rita revela ao leitor que quem escreveu foi sua mãe. Quase chorei.,,

Já reparou como a letra da mãe da gente é uma coisa engraçada?! Numa determinada altura da vida ela irrita, pois é enrolada e de difícil leitura. Além disso, está sempre dando ordens. Mas depois ela emociona, dá saudades. Sabemos que por detrás dela existe um tempo que não volta. Tenho uma foto antiga da minha vó Lúcia jovem, com cerca de trinta anos. Sempre achei a foto linda: o preto e o branco da imagem parecem ornar perfeitamente com o vermelho dos lábios, o azul do céu e o verde da grama acrescentados depois pelo fotógrafo colorista. Técnicas antigas que já não existem mais. A foto ficava em um porta-retratos da sala e me lembro de passar horas observando a foto.

Já velhinho e viúvo, meu avô me chamou de lado e me deu o porta-retratos: “leva logo, pois seus primos podem querer também”. Em casa, abri o porta-retratos e retirei a foto e... Surpresa! Na parte detrás da foto tinha uma legenda escrita pelo meu avô Fernandes: “Lucy querida em Lindoia, 1944”. A frase não terminava com um ponto final, mas com um borrão. Logo deduzi: foi uma lágrima que espalhou a tinta da caneta e manchou o papel...

Com a morte da esposa, meu vôzinho querido assumiu a árdua tarefa de inventariar e empacotar toda a história de vida da sua amada. Separou roupas e sapatos para doação. Tratou de organizar as joias e, mais importante de tudo, as fotografias. Inteligente como era, sabia que as fotos eram o bem mais precioso. Por isso datou e legendou cada uma delas (e eram muitas!). Imagino que a cada frase criada e a cada palavra escrita, o seu coração tenha se despedaço e sua alma se arrependido e redimido como acontece com todos nós quando perdemos alguém.

Ainda guardo com carinho a foto, mas volta e meia faço uma autocrítica: onde estão os álbuns e as fotografias que os meus filhos vão herdar? Tudo perdido por aí. Em CDs esquecidos, em pendrives que talvez já não abram, na memória deste computador que nem uso mais... Do papel à tecnologia, corremos o risco de perder o registro da escrita familiar, perder esses primeiros textos apresentados a muitas crianças (infelizmente ainda não para a maioria). Eles desaparecem nas redes sociais, se vão com os celulares que dispensamos, somem com os Hds ultrapassados... Legendas, bilhetes, etiquetas, listas, receitas, cartinhas, convites, cartões. Não deixe de escrever diante de seus filhos. Se possível, escreva à mão. Mostre-lhes que o valor da escrita está também no uso que fazemos de forma privada. Ensine-os a amar essa produção. Outras formas surgirão quando forem adultos. Talvez whatapps, facebooks e mensagens de texto se tornem recursos obsoletos. Quem sabe?!

O que está por trás disso tudo, de todos esses textos produzidos no contexto familiar, é a comunicação afetiva que resulta dessa produção simples e original. Só em família essa comunicação carregada de afeto pode ultrapassar os tempos e prosseguir sendo um a leitura essencial que enche nossos olhos de lágrimas...

P.S. 1. Bem que quis, mas ficou para a minha tia: o livro de receitas da minha vó Lúcia cheio de anotações, comentários, alterações nas receitas, outras receitas mais, manchas de óleo, de açúcar, manteiga. Um tesouro! (que família maluca que disputa os textos escritos pelos avós, não é mesmo?!). 2. A foto que acompanha este texto foi retirada do livro “Rita Lee – uma autobiografia”, escrito pela Rita Lee e publicado pela Editora Globo Livros em 2016. Acervo da autora.

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